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O AUTO DO CIRCO
De Luís Alberto de Abreu
Texto escrito especialmente para a Cia Estável de Teatro para a direção de Renata Zhanetta
AUTO DO CIRCO
Prólogo
VOZ Ximbeva! Ximbeva! (XIMBEVA PÁRA ASSUSTADO E PROCURA A ORIGEM DA VOZ) Aqui, Ximbeva. (XIMBEVA PROCURA) Dentro de você! (XIMBEVA
APALPA A CABEÇA) Não na cabeça! (XIMBEVA APALPA A BARRIGA) Aí, não! (DESCONFIADO APALPA A BUNDA. VOZ FALA IRRITADA) No coração, sua besta!
Sou a voz da sua consciência! (XIMBEVA SORRI) Tenho acompanhado com que carinho você trata Coscorão, esse velho palhaço, que tantas glórias deu ao circo,
alegrou tantas platéias, fez rir tantas crianças (XIMBEVA BEIJA A CARECA DE COSCORÃO, COSPE SOBRE ELA E LUSTRA) e, agora está aí, entrevado, incapaz,
carregando o fardo, a sina que Deus lhe deu... (XIMBEVA SUSPIRA E CHORA) Foi ele que lhe ensinou a profissão de palhaço, não foi? (XIMBEVA FAZ GESTO
AFIRMATIVO) Era severo, disciplinador, dava-lhe uns cascudos de vez em sempre, era carrasco mesmo! (XIMBEVA COM RAIVA DÁ UM TAPA NA CABEÇA DE
COSCORÃO, ARRANCA-LHE CABELOS DA CARECA E, TRANSTORNADO, MORDE A CABEÇA DE COSCORÃO) Mas bem que foi ele que lhe acolheu quando lhe
abandonaram, recém-nascido, na entrada do circo, numa caixa de sapato: nu, feio, zoiúdo e cagão! Ele lhe alimentou, ninou, limpou a bunda! Você era filho da mãe-
rua e não quero nem imaginar quem foi seu pai! (XIMBEVA DEPOIS DE UM MOMENTO DE ESPANTO, INQUERE COM GESTOS A VOZ) É isso, mesmo! Naquele
tempo você já era o que continua sendo até hoje: um traste, cacaréu sem préstimo, ruim até de se jogar fora! Um couro de bruaca velha que não vale a tira rebentada
de uma chinela havaiana gasta! E tem mais! Muito mais... (ENQUANTO A “VOZ” FALA XIMBEVA DEPOIS DE OLHAR PARA AS COXIAS, FAZ SINAL DE “AGUARDE”
AO PÚBLICO E SAI. OUVE-SE BARULHO E GRITO DA “VOZ” DO MICROFONE. XIMBEVA VOLTA ORGULHOSO, LIMPANDO AS MÃOS. OLHA COSCORÃO, APONTA-O EMOCIONADO, E SE SACODE COMO SE ESTIVESSE CHORANDO EM SILÊNCIO. DEPOIS, OLHA-O DE SOSLAIO, FAZ BEIÇO IRRITADO E APLICA-LHE UM CASCUDO.)
XIMBEVA (AO PÚBLICO) Se estão com dó é porque não sabem o que eu passo! Estou preso a esse traste como agulha e linha, mão e luva, unha e carne, cu e calça!
COSCORÃO (SEM SE MOVER ) Eu sou a calça!
XIMBEVA Há anos! Há anos cuido, levo pra passear, ponho no sol pra tirar o mofo, lavo e limpo! E esse velho desgraçado come o mesmo que todo mundo, mas não sei mistério da natureza se esconde nas tripas desse homem que desanda tudo o que cai ali! Aquilo é um sorvedouro e manjar fino, bebidas aromáticas, sobremesas delicadas, tudo vira gás pestilento! Até água benta! Já dei pra ele beber chá de jasmim, água de rosas, cândida, ajax pra ver se limpava a tubulação, mas não teve jeito! Quem quiser, eu dou dado de papel passado! Mas quem quer?! Já esqueci, sem querer, três vezes, mas paradas do circo, mas o povo vem sempre devolver! (COSCORÃO ESPREGUIÇA-SE E BOCEJA ACORDANDO)
COSCORÃO (AO PÚBLICO) Boa noite... mas só pra quem merece! E que não devem ser muitos!
XIMBEVA Ih, começou!
COSCORÃO Enquanto o Ximbeva cala a boca, de onde não sai coisa que se aproveite, eu digo pra vocês que isso aqui é um circo de respeito e respeito é uma qualidade rara e nunca é demais! Quero que vocês todos, sem exceção, se divirtam... quando for a hora! Detesto, odeio risadas na parte do drama da mesma forma que tenho ojeriza de seriedade na hora da comédia!
XIMBEVA Eu aviso quando for uma ou outra. Agora, por exemplo, é a parte cômica! Esperem só o drama pra ver!
COSCORÃO Pra quem ainda não sabe, sou o palhaço Coscorão, dono deste circo, da lona, dos aparelhos, das cadeiras onde vocês estão sentados...
XIMBEVA Do mau humor...
COSCORÃO (INTENCIONAL) Dos animais! Sou de tradicional família circense, um dos poucos ainda na ativa que fazem o legítimo espetáculo circense... e o que vocês irão assistir, muito comportados e respeitosos é a história da minha família que mistura nobres franceses...
XIMBEVA Ciganos da Hungria...
COSCORÃO com aristocratas italianos...
XIMBEVA rueiros da Calábria...
COSCORÃO artistas da Inglaterra...
XIMBEVA vagabundos da Saxônia...
COSCORÃO Os mais admiráveis artistas dos palcos e picadeiros...
XIMBEVA Saltimbancos de rua, atores de cabaré, cantores de feira...
COSCORÃO Que vieram ao Brasil no século XIX, a convite do próprio imperador D. Pedro II!
XIMBEVA Vieram ao Brasil socados no fundo de um porão de navio que Europa no século XIX era uma miséria só. Mas tudo isso é só meia verdade porque Coscorão era, mesmo, filho de um peludo que se agregou ao circo nas andanças pelo Brasil!
COSCORÃO Dobre a língua, tome banho e bote gravata para falar da minha família!... (COSCORÃO PÁRA O GESTO NO AR E OLHA PARA XIMBEVA COM AR ALHEIO)
XIMBEVA Pronto! ´tava demorando! A memória de Coscorão está com a pilha gasta e seu cérebro está com problema no arranque!
COSCORÃO Do que é que eu estava falando? Tenho frio nas pernas! Anda, Ximbeva, me leve pro sol!
XIMBEVA Ximbeva isso, Ximbeva aquilo! Lá vamos nós! (EMPURRA A CADEIRA DE RODAS) Essa é a vida de Ximbeva: olhar e cuidar do velho palhaço.
COSCORÃO (AO PÚBLICO) Esta é a vida de Coscorão: alinhar e dar sentido às poucas e caras lembranças que lhe restam. E todas elas são de circo. (SÚBITO, GRITA PARA XIMBEVA) Pára! Que é aquilo que eu estou vendo? (APONTA PARA UMA MULHER QUE ENTRA NO PALCO ARRASTANDO UM BAÚ)
XIMBEVA Não moro na sua cabeça! Sei lá que diabo de alucinação você está vendo agora.
COSCORÃO Uma bela mulher de chapéu... com xale e um camafeu no peito.
XIMBEVA Puxando um baú? É sua avó quando ainda não era sua avó. chegando ao porto do Rio com a família! Todo dia você lembra a ma coisa! (XIMBEVA EMPURRA A CADEIRA DE RODAS COM COSCORÃO PARA FORA)
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